"Deixe Para a Correnteza", Maurício Ieiri
(Micro-conto escrito por Maurício Ieiri (Brasil), propositadamente para este evento)
Deixe Para a Correnteza
O sol queimava em seus ombros. Gelada, a água do mar adormecia os pés. A vastidão de um oceano que sempre a tratara com carinho, que lhe dava os ombros para encostar quando se sentia triste ou, enigmática, cansada de viver. Horizonte vasto, expandido. Era da água salgada que ela tirava energias para continuar.
Um dos dias mais quentes do ano, reconhecia, e a praia normalmente estaria cheia de gente com o rosto branco, protetor solar acumulado na testa, mas algo acontecia em outro ponto da cidade e os turistas ainda estavam longe por causa da baixa estação. Tinha a praia quase toda para si. Ela andou um pouco mais, calafrios percorrendo seu corpo, das canelas geladas até a nuca avermelhada de sol. Uma mistura confusa de temperaturas e sensações.
Pássaros flutuavam no céu de brigadeiro, um azul forte e profundo, tão distante e de alguma forma tão próximo que ela poderia esticar as mãos e tocar em seu tecido macio. Eram gaivotas? Andorinhas? Longe demais, não podia identifica-los. Nuvens de algodão os acompanhava, tão densas e nítidas que o contraste entre azul e branco formava uma pintura, as bordas invisíveis de sua visão como moldura. Quando os fechou, o céu brilhou, queimado nas retinas castigadas por tanta claridade.
Um golfada de ar lhe escapou quando a água fria atingiu o umbigo. Agora, quase todo o corpo estava gelado; ainda os ombros em ardor. “Olhe papai,” a voz infantil atingiu seus ouvidos e ela se virou para encarar um homem de costas arqueadas pela meia-idade e sua criança, uma garota de cinco ou seis anos, loira e sorridente, mostrando os dentes infantis, desajeitados, na boca escancarada. “Aquela ali parece um unicórnio. Um unicórnio!” O homem acompanhou o pequeno braço estendido para cima e riu diante a expressão da criança. Era um dia lindo, o fim das contas.
E, no entanto, seu rosto continuava preso numa torção grotesca, qualquer chance de felicidade voando para além dos pássaros no infinito azul. Os mamilos endureceram diante o frio. O sol daquele dia bonito e quente já não aquecia a mulher. Há tempos não o fazia. No peito, o coração batia calmo, em paz com seu fato, aliviado com o fim de todas as dores.
As marcas do acidente eram visíveis na barriga alva, completamente submersa. Ela as olhou, talvez pela última vez. Quanto tempo ficara com a cabeça baixa, estudando as cicatrizes que lhe tiraram tanto? Horas se passavam antes que o pescoço, endurecido e dolorido, a fizesse mudar de posição. Gostaria de abraçá-lo, acariciar os cabelos e cheirar as fragrâncias de seu banho vespertino. Mas ele se fora, no mesmo dia que chegaram as cicatrizes.
Sozinha continuou, deixando para trás o sol de um dia que parecia nunca acabar. Um dia perfeito, as crianças brincando na água. Com os olhos fechados, viu castelos de areia. Quase sorriu.
Um flash cruzou sua mente. O acidente, metal amassado e sangue empoçado, vidro ao redor, o brilho constante de sirenes.
E assim, a água gelada cobriu sua cabeça.
De olhos abertos, a mulher encarou o escuro de um oceano profundo. A noite, pesada como um manto que lhe cobria os pensamentos há mais tempo do que se importaria de contar, finalmente refletida no gélido abraço da água. O fim de seus dias. De tudo.
Envolta naquela noite eterna, ela finalmente sorriu.
Deixe Para a Correnteza
O sol queimava em seus ombros. Gelada, a água do mar adormecia os pés. A vastidão de um oceano que sempre a tratara com carinho, que lhe dava os ombros para encostar quando se sentia triste ou, enigmática, cansada de viver. Horizonte vasto, expandido. Era da água salgada que ela tirava energias para continuar.
Um dos dias mais quentes do ano, reconhecia, e a praia normalmente estaria cheia de gente com o rosto branco, protetor solar acumulado na testa, mas algo acontecia em outro ponto da cidade e os turistas ainda estavam longe por causa da baixa estação. Tinha a praia quase toda para si. Ela andou um pouco mais, calafrios percorrendo seu corpo, das canelas geladas até a nuca avermelhada de sol. Uma mistura confusa de temperaturas e sensações.
Pássaros flutuavam no céu de brigadeiro, um azul forte e profundo, tão distante e de alguma forma tão próximo que ela poderia esticar as mãos e tocar em seu tecido macio. Eram gaivotas? Andorinhas? Longe demais, não podia identifica-los. Nuvens de algodão os acompanhava, tão densas e nítidas que o contraste entre azul e branco formava uma pintura, as bordas invisíveis de sua visão como moldura. Quando os fechou, o céu brilhou, queimado nas retinas castigadas por tanta claridade.
Um golfada de ar lhe escapou quando a água fria atingiu o umbigo. Agora, quase todo o corpo estava gelado; ainda os ombros em ardor. “Olhe papai,” a voz infantil atingiu seus ouvidos e ela se virou para encarar um homem de costas arqueadas pela meia-idade e sua criança, uma garota de cinco ou seis anos, loira e sorridente, mostrando os dentes infantis, desajeitados, na boca escancarada. “Aquela ali parece um unicórnio. Um unicórnio!” O homem acompanhou o pequeno braço estendido para cima e riu diante a expressão da criança. Era um dia lindo, o fim das contas.
E, no entanto, seu rosto continuava preso numa torção grotesca, qualquer chance de felicidade voando para além dos pássaros no infinito azul. Os mamilos endureceram diante o frio. O sol daquele dia bonito e quente já não aquecia a mulher. Há tempos não o fazia. No peito, o coração batia calmo, em paz com seu fato, aliviado com o fim de todas as dores.
As marcas do acidente eram visíveis na barriga alva, completamente submersa. Ela as olhou, talvez pela última vez. Quanto tempo ficara com a cabeça baixa, estudando as cicatrizes que lhe tiraram tanto? Horas se passavam antes que o pescoço, endurecido e dolorido, a fizesse mudar de posição. Gostaria de abraçá-lo, acariciar os cabelos e cheirar as fragrâncias de seu banho vespertino. Mas ele se fora, no mesmo dia que chegaram as cicatrizes.
Sozinha continuou, deixando para trás o sol de um dia que parecia nunca acabar. Um dia perfeito, as crianças brincando na água. Com os olhos fechados, viu castelos de areia. Quase sorriu.
Um flash cruzou sua mente. O acidente, metal amassado e sangue empoçado, vidro ao redor, o brilho constante de sirenes.
E assim, a água gelada cobriu sua cabeça.
De olhos abertos, a mulher encarou o escuro de um oceano profundo. A noite, pesada como um manto que lhe cobria os pensamentos há mais tempo do que se importaria de contar, finalmente refletida no gélido abraço da água. O fim de seus dias. De tudo.
Envolta naquela noite eterna, ela finalmente sorriu.
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