"A noite" de José Mário Branco

(poema dito por Susana Vieira no encerramento da Jornada para a noite)


.A NOITE*— JOSÉ MÁRIO BRANCO


Com que passo tremente se caminha
Em busca dos destinos encobertos!
Como se estão volvendo olhos incertos!
Como esta geração marcha sozinha!

Fechado, em volta, o céu! o mar, escuro!
A noite, longa! o dia, duvidoso!
Vai o giro dos céus bem vagaroso...
Vem longe ainda a praia do futuro...

Em tudo que já fomos está o que seremos
No fundo desta noite tocam-se os extremos
E se soubermos ver nos sonhos o processo
Os passos para trás não são um retrocesso

A noite é um sinal de tudo quanto fomos
Dos medos, dos mistérios, das fadas e dos gnomos
Da ignorância pura e da ciência irmã
Em que, sendo passado, já somos amanhã

A noite é o espaço vago, o tempo sem história
Em que as perguntas nascem dentro da memória
Em tudo que já fomos está o que seremos

Mas cabe perguntar: Foi isto que quisemos?

Em tudo que já fomos está o que deixamos
No ventre das marés, nos portos que tocamos
O rumo desvendado, o preço da bagagem
É tudo quanto resta para seguir viagem

A noite é parideira da contradição
Que existe em cada sim que nos parece não
Olhando para nós, os grandes dissidentes
No meio da luta entre lemes e correntes

Será esta viagem feita pelo vento
Será feita por nós, amor e pensamento
O sonho é sempre sonho se nos enganamos
Mas cabe perguntar: Como é que aqui chegamos?

Vem longe ainda a praia do futuro...

É a luta sem glória! é ser vencido
Por uma oculta, súbita fraqueza!
Um desalento, uma íntima trisreza
Que à morte leva... sem se ter vivido!

A estrada da vida anda alastrada

De folhas secas e mirradas flores...
Eu não vejo que os céus sejam maiores,
Mas a alma... essa é que eu vejo mais minguada!

Em tudo que já fomos estão os nossos mortos
E os vivos que ficaram entram nos seus corpos
Na noite do amor, na noite do sinal
Naufrágio de fantasmas na pia baptismal

A noite é o impreciso e escuro purgatório
Que alinha as nossas almas no seu dormitório
A culpa dos heróis é serem sempre poucos
Acaso somos mais? ou tão-somente loucos?

Temos que descasar a culpa e o prazer
Naquilo que fizemos ou deixamos de fazer
Para reconstruir os corações cativos
Mas cabe perguntar:

Mama, meu menino, o leite é como um rio

Acaso estamos vivos?

Eu não vejo que os céus sejam maiores!


Irmãos! Irmãos! amemo-nos! é a hora...
É de noite que os tristes se procuram,
E paz e união entre si juram...
Irmãos! Irmãos! amemo-nos agora!

Vós que ledes na noite... vós, profetas...
Que sois os loucos... porque andais na frente...
Que sabeis o segredo da fremente
Palavra que dá fé - ó vós, poetas!

Em tudo que já fomos há um sonho antigo
Conversa universal de cada um consigo
São sombras e brinquedos, tudo misturado
E o vago sentimento de nascer culpado

Mama, meu menino, o leite é como um rio

Será um sonho absurdo este olhar para dentro
E o nosso destino, só, servir de exemplo
Andamos a fugir à frente desta vida
Mas cabe perguntar: Existe uma saída?

Irmãos! Irmãos! amemo-nos agora!
É de noite que os tristes se procuram!


Sim! que é preciso caminhar avante!
Andar! passar por cima dos soluços!
Como quem numa mina vai de bruços,
Olhar apenas uma luz distante!

Irmãos! Irmãos! amemo-nos agora!
É de noite que os tristes se procuram!

Heis-de então ver, ao descerrar do escuro,
Bem como o cumprimento de um agouro,
Abrir-se, como grandes portas de ouro,
As imensas auroras do futuro!

Mama, meu menino, o leite é como um rio
Que nunca pára de correr
O leite branco
É o remédio santo
Com que tu vais crescer

Entre as duas margens quentes e fecundas
Mama, meu menino, sem parar
Rio sem fundo
Que corre devagar

Mama o leite, meu passarinho,

Mata a sede sem temor
Este rio é o teu caminho
O cordão do meu amor

Mama, meu menino, mais um poucochinho
Que eu páro o tempo só p'ra ti
Seiva de vida
Com que fui enchida
Quando te concebi

Um pequeno esforço, mete-te ao caminho
Duas colinas mais além
Asas de estrume
P’ra te dar o lume
Oh meu supremo bem

Mama o leite, meu passarinho,
Mata a sede sem temor
Este rio é o teu caminho
O cordão do meu amor

Irmãos! Irmãos! amemo-nos agora!
É de noite que os tristes se procuram!


*Álbum:A Noite, Emi-Valentim de Carvalho, 1996.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Programa definitivo

Estudos em torno da Noite

Comissão Organizadora